Talvez seja difícil imaginar o futuro de um praticante de esportes que receba um diagnóstico de câncer – e a notícia de que passará a ser cadeirante.
Mas sua opinião vai mudar quando conhecer a história do administrador de empresas Gustavo Carneiro.
Mineiro de Uberlândia, Gustavo sempre foi viciado em endorfina. Mas em 2017 passou pelo maior desafio de sua vida. Foram exatos 21 dias entre o diagnóstico de um câncer e a cirurgia para amputar uma perna. Tempo suficiente para que ele pudesse abrir uma nova perspectiva.
Ao sair da sala do médico, após o diagnóstico, Gustavo percebeu que precisaria de uma nova motivação. Fez do esporte a sua terapia. Pesquisou as opções de esportes paraolímpicos.
A partir daí, o mineiro decidiu que era hora de retomar um sonho dos tempos de adolescência, quando alimentava o desejo de ser um atleta profissional de tênis. Praticando o esporte, conseguiu ser campeão mineiro aos 14 anos.
Começou a jogar, já como cadeirante, no fim de 2017. Em 2018, passou então a se dedicar de corpo e alma ao aos treinos – e a estudar os detalhes do Tênis Paralímpico. Encerraria, já no final daquele ano, a temporada como top 3 do Brasil, vendo seu nome na 86ª colocação do ranking mundial. No ano seguinte, já estava disputando os Jogos Parapan-americanos de Lima, chegando às semifinais.
Seu mais novo desafio são os Jogos Paralímpicos, que serão realizados entre agosto e setembro deste ano em Tóquio.
“Gustavo é um exemplo de superação. Sua história é inspiradora: um exemplo de determinação”,
diz o CEO da Rede Integração, Rogério Nery de Siqueira Silva.
Nessa entrevista, feita por e-mail, Gustavo conta mais detalhes sobre sua vida e carreira de atleta. Segundo ele, a gratidão por estar vivo e poder continuar sua história de vida é uma sensação muito forte. “Tive um câncer, poderia ter ido embora. Pensar assim muda tudo, muda os valores, altera a maneira de encarar as dificuldades diárias.”
Veja como foi a entrevista.
1. Rogério Nery de Siqueira Silva – Você sempre foi uma pessoa muito devotada ao esporte. Após o diagnóstico, como foi lidar com a perspectiva de ter de passar pelo procedimento que passou? E como foi seu processo para lidar com o procedimento de amputação? Que tipo de suporte você buscou? Psicológico e espiritual?
Gustavo Carneiro – Sempre fui muito ligado ao esporte, desde criança. Já pratiquei diversas modalidades e o esporte sempre foi uma terapia em muitos momentos da minha vida. A partir do dia em que descobri que precisaria amputar até a cirurgia, foram exatos 21 dias. Tudo aconteceu muito rápido. Foi justamente a palavra PERSPECTIVA que me ajudou a aceitar o que estava acontecendo. Recebi a notícia do médico em São Paulo (SP). Estava em um hospital que é referência no tratamento de câncer no país. Saí da sala do médico, sentei na recepção e comecei a pensar como seria a minha vida dali em diante. Foi no hospital, sentado numa sala, olhando para várias pessoas que estavam tratando da mesma doença que coloquei a minha vida em perspectiva e percebi que estar vivo já era lucro. Já que algumas pessoas não teriam a “sorte” que eu estava tendo, de continuar a viver. Eu não tinha metástase e o procedimento era “somente” amputar a perna. Então o meu processo para lidar com tudo aquilo foi colocar a situação em perspectiva. Eu não tinha outra saída, e decidi não ficar reclamando. Minha terapia foi o esporte, o apoio dos familiares e amigos, e fé em Deus.
2. Rogério Nery de Siqueira Silva – Após o procedimento, o que mudou em sua vida e na sua maneira de encará-la? E como o esporte se inseriu nesse recomeço?
Gustavo Carneiro – Primeiramente a minha gratidão em estar vivo e poder continuar a minha história de vida é algo que ficou muito forte em mim. Eu tive um câncer, poderia ter ido embora. Pensar assim muda tudo, muda os valores, altera a maneira de encarar as dificuldades diárias. O que mudou foi que precisei aprender a viver sem uma perna, a fazer tudo sem ela. No início usava muletas e o simples fato de ir a um self-service ou colocar a comida no prato era complicado. Foi um período longo de adaptação até automatizar este novo jeito de viver.
3. Rogério Nery de Siqueira Silva – Como foi seu início no tênis em cadeiras de rodas em 2017 e de que modo foi sua evolução até se tornar um dos mais bem ranqueados em todo o planeta?
Gustavo Carneiro – Desde a adolescência eu tinha o sonho de ser um atleta profissional de tênis. Fui campeão mineiro de tênis aos 14 anos e o sonho não aconteceu naquele momento. Logo antes de passar pela amputação, naqueles 21 dias esperando a cirurgia, comecei a pesquisar os esportes paraolímpicos. Resolvi então que buscaria aquele sonho de adolescente. Comecei a jogar em dezembro de 2017. A partir daí, eu entrei de cabeça. Comecei a treinar e a estudar muito. Apesar de ter jogado muito bem em pé, jogar na cadeira era totalmente diferente. Porém, no final de 2018 terminei como top 3 do Brasil e 86º no ranking mundial. No ano seguinte, encerrei o ano como número 2 do brasil e 35 do mundo. Essas colocações só foram possíveis por dois motivos: por saber jogar tênis e por treinar muito! Eu vivi tênis em cadeira de rodas 24h por dia durante todos esses anos.
4. Rogério Nery de Siqueira Silva – O que significa participar dos Jogos de Tóquio? Com a pandemia de covid-19, sua rotina de treinos foi afetada? Como está sendo dentro e fora de quadra? E para você, vale a máxima do Barão de Coubertin (“o importante é participar”) ou você se considera ultracompetitivo e sempre entra para vencer? Dá para sonhar com medalha?
Gustavo Carneiro – Me classificar para os jogos de Tóquio é a consagração de um sonho, é a minha vitória pela vida. No início da pandemia foi um pouco mais complicado, pois tudo estava realmente fechado, mas depois consegui manter meus treinos, a partir do fim de 2020 até 2021. Todo atleta que vai para uma Olimpíada ou Paraolimpíada com certeza pensa em conquistar uma medalha e não sou diferente. Sempre fui ultracompetitivo, sonho grande, entro sempre para ganhar mesmo se for jogar contra o número 1 do mundo. Mas logicamente tenho consciência do alto nível dos adversários, sou novo ainda no circuito e estou trabalhando para evoluir a cada dia.
5. Rogério Nery de Siqueira Silva – Como foi participar do Pan de 2019? O que faltou para ganhar a medalha em Lima? E o que foi aperfeiçoado nesses dois anos?
Gustavo Carneiro – Jogar o Pan de 2019 foi o momento mais feliz da minha carreira e também o mais triste. Fui para Lima sabendo que não teria chances de medalha em na modalidade simples naquele momento. Meu objetivo era ficar entre os oito melhores e terminei em 5º lugar. Já nas duplas fomos sabendo que era muito certo irmos para a final, nossa dupla era uma das favoritas. Mas perdemos na semifinal para os Estados Unidos e também na disputa pelo bronze para o Chile. Ficamos então em 4º lugar. Foi muito difícil superar essa derrota. Sinceramente, até passou pela minha cabeça parar de jogar. Acho que só quem já passou por uma derrota assim consegue mensurar o que é isto. É muito doloroso, ainda mais sabendo que tinha tudo pra trazer uma prata ou no mínimo um bronze.
6. Rogério Nery de Siqueira Silva – Antes das competições, quais são suas principais fontes para se motivar ou manter o equilíbrio antes de cada torneio? E o que você prefere para relaxar na véspera e momentos antes de um jogo? Livros, músicas ou filmes?
Gustavo Carneiro – Faço um trabalho com psicólogo do esporte e conversar com ele antes das competições é muito importante. E para tirar um pouco da ansiedade eu assisto a série de TV Friends, que me ajuda a relaxar e não pensar tanto nos jogos nos momentos em que preciso descansar a cabeça.
7. Rogério Nery de Siqueira Silva – Como foi a experiência de ter participado e completado uma das mais difíceis maratonas do mundo, na Patagônia? Quais são as lembranças mais marcantes que você tem dessa experiência e que lições que você tirou deste aprendizado? É verdade que você teve que encarar a ameaça de um puma?
Gustavo Carneiro – A Ultra Fiord me ensinou uma lição que trago para o tênis e para as dificuldades da vida: nós somos capazes de fazer coisas que nem imaginamos, nosso limite sempre é maior do que acreditamos. Sem dúvida as lembranças mais marcantes foram os momentos mais tensos da madrugada. Muito frio, sem comida, era o percurso mais difícil com muita lama que todos se afundavam e tinha começado a chover um pouco. Foi desesperador cruzar aquela madrugada, não tínhamos mais a mínima noção do quanto faltava e que horas conseguiríamos chegar. Sobre os pumas: hoje é engraçado (risos). O organizador da prova nos falou “os pumas ficam acordados à noite; então, é mais perigoso. Andem sempre juntos, não fiquem sozinhos”. Lembro que o medo era tão grande que a gente mal conversava para ficar atento aos barulhos e um possível ataque. Em suma, fome, frio, chuva, muita lama, perdidos na imensidão e, por fim, o perigo de encontrar os pumas foi o que resumo do que passamos lá na Patagônia.
8. Rogério Nery de Siqueira Silva – Na sua opinião, a adaptação dos espaços urbanos é suficiente para a acessibilidade? O que mudou na sua percepção depois de ter precisado tornar-se cadeirante? O que é preciso para avançar mais?
Gustavo Carneiro – Sinceramente não tenho uma grande percepção detalhada deste assunto, já que ando com prótese e a cadeira só uso para jogar. Mas por conviver com diversas pessoas cadeirantes vejo a dificuldade da acessibilidade. E não é só no Brasil, isso ocorre no mundo todo. São tantos pequenos detalhes que fazem a diferença e que não percebemos, mas que ajudam muito. Pra deixar registrado, Uberlândia é uma cidade muito avançada neste quesito e sempre elogiada por vários jogadores que vem à cidade.
9. Rogério Nery de Siqueira Silva – Que dicas você diria para quem está enfrentando desafios semelhantes aos que você passou e ainda passa? E para quem está começando no esporte paraolímpico?
Gustavo Carneiro – Recentemente, estava conversando com uma pessoa que amputou a perna e estava um pouco deprimida. Mas eu sempre falo que é importante colocar em tudo em perspectiva. Ninguém quer amputar uma perna, mas todo mundo quer ficar vivo. Acho que pensar assim ajuda a não ficar pensando no que aconteceu e começar mais a agradecer por estar vivo. Para quem está começando no esporte paralímpico eu digo que o esporte paralímpico é maravilhoso, altamente competitivo e com inúmeras oportunidades. No entanto, como tudo na vida requer muita determinação para alcançar os resultados.
10. Rogério Nery de Siqueira Silva – Quais são seus sonhos e realizações a conquistar depois dos Jogos?
Gustavo Carneiro – Tenho três objetivos pela frente que foram traçados desde 2018: estar entre os dez melhores do mundo, conquistar uma medalha no próximo Pan em 2023 no Chile e ser medalhista em Paris em 2024. E fora o tênis eu amo correr, estou treinando com uma prótese de corrida e pretendo conseguir correr os 10km em breve.